A certa altura da sua estreia em Portugal, Ryan Adams decidiu agradecer a Jesse Malin, o companheiro de ofício que assegurou a primeira parte do concerto na Aula Magna. "Ver um concerto dele é como ir a uma festa num pátio. Ver os meus é como ir ao dentista", comparou. "Um dentista de quem nem desgostamos e, enfim, temos mesmo de ir lá tratar daquilo". O humor depreciativo não veio do nada: o espetáculo arrancou tremido. À entrada, Ryan fez distribuir folhetos nos quais se alertava para a proibição de fotografias, filmagens e telefonemas no interior da sala - os prevaricadores, escrevia-se, incorreriam na ira de Satanás ou do próprio artista, qual dos dois o mais temível. Lá dentro, dissipam-se as dúvidas: Ryan não terá proibido a presença de fotógrafos, profissionais e amadores, por qualquer insegurança com a sua imagem (o eterno "poster boy" de cabelo desalinhado e calça justa), mas possivelmente porque se distrai com tudo. O barulho do ar condicionado ("Parece que vem aí um aspirador gigante atrás de nós todos. Bem, pelo menos atrás de mim"), os papéis onde vasculha constantemente por cábulas de canções ("Sou velho, tenho de copiar. Demasiadas canções", justificou-se, quando para o piano levou um calhamaço atrás), o espetador que tosse com insistência ("Estou muito preocupado com essa sua tosse. Se pudesse curava-o pela música", troçou, dedicando-lhe mesmo um jingle medicinal). Os flashes das câmaras, imaginamos por esta amostra de cabeça "cata-vento", seriam mais uma distração para o homem que conduziu, apesar de tudo, com sucesso um concerto sempre a milímetros do desastre ("Waiting to Derail", lá diriam os Whiskeytown, a sua primeira banda, em 1996).
Tudo começou com um atraso de quase meia hora: o homem que a Aula Magna, quase cheia, aguardava de forma paciente chegou sorrateiramente, sussurrando um boa noite e sentando-se no banco onde passaria boa parte da noite, com uma guitarra tricolor na qual, garante, escreve todos os seus discos. Por isso, foi a única que trouxe consigo para esta digressão acústica na Europa; por isso temos de esperar entre canções que a afine. "Mas vai valer a pena. Esta manhã quando me levantei a guitarra já estava a pé e já me tinha feito o pequeno-almoço", brincou. Por essa altura, já tínhamos visto Ryan a espancar a harmónica, que o deixou ficar mal durante a belíssima música de abertura, "Oh My Sweet Carolina", mas também já o tínhamos visto a erguer-se com graciosidade durante "Firecracker", "Don't Fail Me Now" ou "Please Don't Let Me Go" - sempre à guitarra, sempre sentado e sempre provando que entre ele e um songwriter simpático como Jesse Malin há um mundo de diferença, e não necessariamente aquele que separa uma festa no pátio de uma ida ao dentista.
Em tempos figura cimeira do chamado alternative country, Ryan Adams é abençoado com um carisma rock que torna difícil tirarmos os olhos dele - mesmo quando, trapalhão, se debruça no chão à procura dos papéis ou da palheta, como os comuns mortais buscam a chave de casa ou tentam pôr ordem nos papéis do IRS. "Eu não acredito que mais alguma coisa possa correr mal", desabafa a certa altura. No final do concerto, passado o cabo das tormentas, compararia até o arranque tremido ao famoso desaire de playback dos Milli Vanilli, para risota geral. A verdade é que, além do carisma, Ryan Adams tem uma voz que, mais que cantar, afaga, enquanto se enche de fumo ou se evapora em falsete. E canções que, esmiuçando as miudezas da vida e do coração, funcionam como abraços apertados ou murros no ombro. É nesta bolha, que tanto evoca uma porção de clássicos da música americana de raiz como as duas ou três emoções mais universais, que o concerto vai avançando.
Quando trocou a guitarra pelo piano, para uma grande versão de "New York New York" - o semi-hit de 2001, ontem transformado em balada crepuscular - o concerto nada perdeu; quando passou a tocar guitarra (sempre a tal, de estimação, que chegou a comparar a um avozinho idoso) de pé, ao invés de sentado no banquinho, melhor ainda. Aí vimos a voz mais rock e rouca de Adams a despontar em "This House Is Not For Sale", o fantasma benigno dos Whiskeytown a regressar à vida em "16 Days" e, acima de tudo, a conversão de "Strawberry Wine", balada ao piano incluída no álbum 29 , num quase a capella mimoso, teatral, picotado na guitarra.
Antes do encore, no qual aproveitou para mandar os atacados pela tosse "beber um chazinho, vestir o pijama e ver uma comédia romântica", chegou o tipo de momento que paga um bilhete: "Come Pick Me Up", da imaculada estreia a solo Heartbreaker , em todo o seu esplendor de desgosto de amor + falso desdém + solo de harmónica. Quem esperou 11 anos para ver este clássico ao vivo não precisava de mais nada mas, mesmo assim, Adams quis recompensar os espetadores. "Sei que isto foi um teste de paciência e de fé, tanto para vocês como para mim". E lá vieram duas canções novas e a promessa de algo "tão assustador" como ajudar aos primeiros passos das ditas: trepar pelas paredes do nosso prédio de forma sinistra enquanto, de pijama vestido e chávena de chá na mão, estivéssemos a ver, descansados, a tal comédia romântica.
Ao fim de cerca de duas horas, feitas as contas e assente o pó, o que tivemos à nossa frente, numa estreia tardia mas gostosa, foi um Ryan Adams algo disperso no seu imenso talento, mas com todo o coração empregue em palco. Salvo algum fura-embargo, não teremos vídeos do YouTube para recordar os melhores momentos, mas às vezes também é preciso dar trabalho à outra memória, que não a da computador. E um concerto-acontecimento destes é um ótimo pretexto para isso.
Na primeira parte, Jesse Malin, que outrora chegou a ser apontado como sucessor de Ryan Adams, mostrou o seu repertório country-rock mas, acima de tudo, uma deliciosa veia de comediante confessional, disputando com Sufjan Stevens o título de maiores intervenções entre músicas. Se a abordagem de Sufjan, porém, é algo esotérica, a de Malin passa pelas recordações de uma juventude passada em Queens, um dos distritos de Nova Iorque, com uma mãe que chamava "Reimons" aos Ramones e colegas de escola "com brincos de pena e cabelo à Farrah Fawcett" em cujas secretárias, e como retaliação pela troça com que era tratado, exibiu o seu pénis. A música de Malin é escorreita e não tão divertida como estas fábulas que fizeram o público rir com vontade e aplaudir com generosidade, sobretudo aquando da versão de "You Can Make Him Like You", dos Hold Steady. Pode não ter a centelha que faz as cabeças virarem-se para Adams, mas soube vender muitíssimo bem o seu peixe, com histórias que foram do tentar encontrar um restaurante vegetariano em Lisboa - e deparar-se com prostitutas - até citações de Charlie Sheen. Valeu.
Tudo começou com um atraso de quase meia hora: o homem que a Aula Magna, quase cheia, aguardava de forma paciente chegou sorrateiramente, sussurrando um boa noite e sentando-se no banco onde passaria boa parte da noite, com uma guitarra tricolor na qual, garante, escreve todos os seus discos. Por isso, foi a única que trouxe consigo para esta digressão acústica na Europa; por isso temos de esperar entre canções que a afine. "Mas vai valer a pena. Esta manhã quando me levantei a guitarra já estava a pé e já me tinha feito o pequeno-almoço", brincou. Por essa altura, já tínhamos visto Ryan a espancar a harmónica, que o deixou ficar mal durante a belíssima música de abertura, "Oh My Sweet Carolina", mas também já o tínhamos visto a erguer-se com graciosidade durante "Firecracker", "Don't Fail Me Now" ou "Please Don't Let Me Go" - sempre à guitarra, sempre sentado e sempre provando que entre ele e um songwriter simpático como Jesse Malin há um mundo de diferença, e não necessariamente aquele que separa uma festa no pátio de uma ida ao dentista.
Em tempos figura cimeira do chamado alternative country, Ryan Adams é abençoado com um carisma rock que torna difícil tirarmos os olhos dele - mesmo quando, trapalhão, se debruça no chão à procura dos papéis ou da palheta, como os comuns mortais buscam a chave de casa ou tentam pôr ordem nos papéis do IRS. "Eu não acredito que mais alguma coisa possa correr mal", desabafa a certa altura. No final do concerto, passado o cabo das tormentas, compararia até o arranque tremido ao famoso desaire de playback dos Milli Vanilli, para risota geral. A verdade é que, além do carisma, Ryan Adams tem uma voz que, mais que cantar, afaga, enquanto se enche de fumo ou se evapora em falsete. E canções que, esmiuçando as miudezas da vida e do coração, funcionam como abraços apertados ou murros no ombro. É nesta bolha, que tanto evoca uma porção de clássicos da música americana de raiz como as duas ou três emoções mais universais, que o concerto vai avançando.
Quando trocou a guitarra pelo piano, para uma grande versão de "New York New York" - o semi-hit de 2001, ontem transformado em balada crepuscular - o concerto nada perdeu; quando passou a tocar guitarra (sempre a tal, de estimação, que chegou a comparar a um avozinho idoso) de pé, ao invés de sentado no banquinho, melhor ainda. Aí vimos a voz mais rock e rouca de Adams a despontar em "This House Is Not For Sale", o fantasma benigno dos Whiskeytown a regressar à vida em "16 Days" e, acima de tudo, a conversão de "Strawberry Wine", balada ao piano incluída no álbum 29 , num quase a capella mimoso, teatral, picotado na guitarra.
Antes do encore, no qual aproveitou para mandar os atacados pela tosse "beber um chazinho, vestir o pijama e ver uma comédia romântica", chegou o tipo de momento que paga um bilhete: "Come Pick Me Up", da imaculada estreia a solo Heartbreaker , em todo o seu esplendor de desgosto de amor + falso desdém + solo de harmónica. Quem esperou 11 anos para ver este clássico ao vivo não precisava de mais nada mas, mesmo assim, Adams quis recompensar os espetadores. "Sei que isto foi um teste de paciência e de fé, tanto para vocês como para mim". E lá vieram duas canções novas e a promessa de algo "tão assustador" como ajudar aos primeiros passos das ditas: trepar pelas paredes do nosso prédio de forma sinistra enquanto, de pijama vestido e chávena de chá na mão, estivéssemos a ver, descansados, a tal comédia romântica.
Ao fim de cerca de duas horas, feitas as contas e assente o pó, o que tivemos à nossa frente, numa estreia tardia mas gostosa, foi um Ryan Adams algo disperso no seu imenso talento, mas com todo o coração empregue em palco. Salvo algum fura-embargo, não teremos vídeos do YouTube para recordar os melhores momentos, mas às vezes também é preciso dar trabalho à outra memória, que não a da computador. E um concerto-acontecimento destes é um ótimo pretexto para isso.
Na primeira parte, Jesse Malin, que outrora chegou a ser apontado como sucessor de Ryan Adams, mostrou o seu repertório country-rock mas, acima de tudo, uma deliciosa veia de comediante confessional, disputando com Sufjan Stevens o título de maiores intervenções entre músicas. Se a abordagem de Sufjan, porém, é algo esotérica, a de Malin passa pelas recordações de uma juventude passada em Queens, um dos distritos de Nova Iorque, com uma mãe que chamava "Reimons" aos Ramones e colegas de escola "com brincos de pena e cabelo à Farrah Fawcett" em cujas secretárias, e como retaliação pela troça com que era tratado, exibiu o seu pénis. A música de Malin é escorreita e não tão divertida como estas fábulas que fizeram o público rir com vontade e aplaudir com generosidade, sobretudo aquando da versão de "You Can Make Him Like You", dos Hold Steady. Pode não ter a centelha que faz as cabeças virarem-se para Adams, mas soube vender muitíssimo bem o seu peixe, com histórias que foram do tentar encontrar um restaurante vegetariano em Lisboa - e deparar-se com prostitutas - até citações de Charlie Sheen. Valeu.
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